Casos do Romualdo
Um talho

Uma, tive-a eu, e creio que outra faca igual não apareça. Deu-ma o compadre Mingote Pereira, infelizmente já falecido; Deus lhe fale n'alma!

Era - a faca - de têmpera muito dura, mas depois de agarrar corte, admirável: podia se atirar para o ar um fio de teia de aranha, que antes dele cair a faca cortava-o quantas vezes se quisesse, tendo boa vista!

Um dia, na casa da sogra do dito meu compadre Mingote houve uma jantarola.

Corria bem a festa, quando apareceu uma travessa com - grande como um galo -uma bela galinha assada, de forno. E como naquele tempo era de uso, um dos convidados, mais habilitado, tinha de trinchar a ave.

A sogra convidou o Mingote.

O meu compadre levantou-se, colocou na sua frente a galinha, e armado do garfo grande e do trinchante afiado, começou a trabalhar.

E a querer espetar o garfo, a querer fincar a galinha deu-lhe uns pontaços com o trinchante, para abrir brecha onde cravasse o tridente.

Mas, por seguro, a galinha era velha, como a sogra do compadre, e dura e lisa como chifre!

O compadre Mingote, já vermelho, tremendo no nariz, lidava, lidava.., e não espetava!

A sogra, de lá da cabeceira, resmungou: Oh! homem! nada?

O compadre respondeu: Já vai! E firmou o garfo a todo o muque, como quem crava uma estaca, a pulso!

Mas a galinha agüentou a estocada; e conforme o garfo bateu-lhe no costado... escorregou, e furou o prato e cravou-se na tábua da mesa e espirrou molho gordo, como chuva; a galinha saltou pra diante, como bala, e derrubando os copos, garrafas e compoteiras, bateu sobre o ombro da sogra do Mingote, ricochetou para a parede, sobre o relógio, cujo maquinismo achatou; daí para a janela, quebrando-lhe os caixilhos e caindo no pátio, derreou uma porca macau, matando-lhe três leitões; virou um gongá onde estava uma perua, no choco, afinal foi bater no tampo da pipa d'água, que aluiu!

Se fosse gente, era o caso de dizer-se: vá ser dura pra o inferno!

Imagine-se o alvoroto! Um criado trouxe novamente a galinha, não para ser comida, é claro, mas para ser vista, admirada, examinada.

Foi então que a sogra do Mingote censurou-o por não se haver servido da minha faca; e gabou-a. Duvidaram; então, para dar a todos uma pequena prova, ajeitei a galinha e a meio dela descarreguei um golpe.

Que talho! Foi como em manteiga: cortei a meio a galinha, o prato, a mesa; atorei pelo joelho a perna do vizinho da esquerda, o pé da cadeira onde ele sentava-se, a tábua do assoalho e o barrote!

O talho não foi adiante por falta de braço!

Que talho!


Findava aqui o calhamaço de que a princípio se falou, quando disse que o recebi em certa hora de pleno dezembro, por véspera de Natal, quando eu estava, desesperado, a abanar mosquitos, etc. etc. Findava aqui, no caso deste talho. Apenas, ao canto da página, a iilápis, havia ainda uns dizeres que custei a decifrar, e que afinal eram estes: o 2º volume será o dos "Sonhos do Romualdo".

Durmamos, pois, e vamos sonhar também.

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