A mandinga

I

No espesso nevoeiro daquela madrugada de junho - uma sexta-feira - muito enrolado na sua capa, de gola alta - chapéu mole desabado - e de sapatos de verniz - de laçarotes pretos - ia - rápido o Elesbão Soares e ao que parecia - único na rua solitária.

Amortecida na bruma - a luz dos lampiões formava uma como auréola - avermelhada tristonha e baça - o que acrescentava o isolamento do retardatário - que sem poder alongar o olhar - apenas tinha e vagamente o consolo de distinguir - sem lhes perceber as particularidades - alguns edifícios cuja arquitetura, cores, letreiros e até números conhecia.

E evidentemente o homem ia preocupado, porque resmungava - resmungava - sumido o rosto nas dobras da capa.

Quis fumar, puxou do bolso um cigarro; não encontrando fósforos - atirou-o - longe de mau humor - de encontro a uma parede.

Tomando a calçada da praça - contornou uma parte do gradil, e entrando por uma das ruas que descem para a Várzea, indo - indo perdeu-se de todo no nevoeiro e na escuridão - fazendo apenas ouvir - mais e mais enfraquecido - o bater compassado dos tacões dos seus sapatos de verniz de laçarotes pretos.

Havia já nos anos que o Elesbão Soares era viúvo. Morrera-lhe a mulher - de febre puerperal; a pobre filha - um entezinho raquítico e cheio de manchas - poucos dias resistiu as faixas em que a comprimiam, apesar dos chás e fomentações caseiras - finou-se - justamente depois que o padre - chamado a toda pressa - lhe impusera o nome de Agueda - a pedido da mãe, também Agueda - sendo madrinha - de ocasião - a dona Demitildes que já antes tinha lembrado o emprego da água de socorro como meio eficaz de salvação cristã.

Dona Agueda, que da cama, onde ainda a prendia o resguardo - percebera tudo - o pequeno caixão branco - o velório - os convidados - os cheiros de alfazema queimados e de água Labarraque - pôs-se tão desesperada, arrenego tanto de todos e de tudo - chorou - entorceu-se - alvorotou de tal forma o seu enfraquecido corpo - que em breve - acidentes diversos apareceram - complicaram-se e apesar dos cuidados empregados - morrem sem que o Elesbão - teimoso e embezerrado - aparecesse a consolar-lhe os últimos arrancos - como também já nem ao menos beijara a mirrada face morta da efêmera Agueda.

Alto, claro, de face chupada, grandes olhos azuis, casaram-se com a D. Agueda Juliana Vieira, que trouxe-lhe em dote, uma faceirice perigosa e um preto velho, o - Caboclo -, grande conhecedor de ervas e raízes.

Por esse tempo, era seu caixeiro um tal Belmiro, um latagão robusto, e com o rosto cheio de espinhas nada castas e grande amador de modinhas e serenatas ao violão, e que depois de acompanhar a senhora algumas vezes nos seus passeios fora rispidamente despedido, sem procurar sequer acertar as suas contas e sem se saber bem porque, o que muito intrigou as vizinhas amigas da faceira da D. Agueda, que aliás foram unânimes em descobrir nisso, gato encerrado.

Meses depois sucedera a viuvez de Elesbão, que pôs em evidência a sua oculta, porém tenaz repugnância em acariciar as duas Aguedas - moribundas.

Depois de dar ao pesar - pelo tempo do estilo, as portas semi-cerradas - refletiu lá à seu modo no que lhe conviria fazer: tanto se vivia aqui, como além, e assim como assim - já agora - que estava livre e sem cuidados, que era apenas a sua pessoa - o verdadeiro era descansar durante algum tempo. Balanceou as suas mercadorias, conferiu os seus livros, verificou o que havia de lucros, procurou um comprador, encontro-o e passou-lhe todo o negócio, depois de regatear um pouco de parte a parte.

Depois de algum tempo de ausência, reaparecera, atirado a uma elegância pesada de dar nas vistas, ao longe, tantas as jóias, tanto o esplendor das gravatas, tanto o abuso dos perfumes.

Bem observado, era ainda aquela mesma antiga massa bruta, porém falquejada, aplainada, lixada.

Dado o período da satisfação à curiosidade de seus antigos amigos, foi resvalando para a modorra do meio, tornou-se o tipo vulgar um homem - um sujeito como os outros.

De uma feita - ao terminar uma grande festa na igreja matriz - o Elesbão Soares entrou em ala - sem saber bem como - em meio de uma porção de rapazes que esperavam na porta da sacristia - a saída das famílias e que quase todos contavam amigos -parentes ou conhecidos.

Ao enfrentar com ele - por mero acaso - caiu o leque a uma senhora que passava.

Curvou-se rápido - apanhou-o do chão - e um pouco turbado - entregou-o... não à dama - mas a um senhor, velho, grande e com cara de poucos amigos, que a acompanhava - e que nem sequer lhe disse - obrigado!...

Um dos rapazes não se conteve e disse-lhe por entre o borborinho da multidão que se atropelava:

- O senhor não devia dar o leque àquele tipo: é um grosseiro...

- Mas era o dono...

- História! Um urso! Ela, sim... um fazendão!

E deu-lhe as costas, indo na onda para fora da porta onde já estava um grupo de conhecidos seus.

Aquele simplíssimo, trivial incidente - lançou-o em busca de um antigo auxiliar - aquele quase deslembrado Caboclo cujo préstimo ele conhecia...

Eis porque - como se saisse de um baile, ia o Elesbão Soares - no denso nevoeiro daquela madrugada de junho - à Várzea - resmungando - resmungando sumido, o rosto nas dobras da capa.

Continua...
Serafim Bemol
Correio Mercantil, 15 de outubro de 1893.

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