Casos do Romualdo
Três cobras

Sempre que ouço falar em cobras, benzo-me, em sinal de gratidão à divindade, por estar ainda hoje vivo, e aqui, com saúde, para poder referir o passado comigo e elas.

Quisesse eu contar casos de cobras. Registro apenas um terço, por causa da circunstância de ter sucedido durante uma só viagem.

Foi no tempo da guerra do Paraguai. Eu era cadete; o meu regimento seguia, pela campanha, recebendo a incorporação de piquetes de recrutas mandados de vários lugares: já se vê portanto que muita gente presenciou o acontecido.

E que muitos já morreram, outros extraviaram-se, e se não, eu apresentaria testemunhas, isto se alguém me duvidasse, o que não espero: felizmente sou tido e havido por homem de palavra!

Primeira cobra.

Uma tarde, ao lusco-fusco, acampamos junto a um pedregal; arrumada a cavalhada, oficiais e soldados, soprando nos dedos, fomos fazendo as camas nos arreios, e como o cansaço era grande, só se fez uma fogueira, e quem pôde aí perto deitou-se, com os pés para o braseiro.

Eu fui dos felizardos da quentura. Mas também o único de negra sorte, nessa noite.

Deitei-me; como de costume, fiz uma reza a São Romualdo e adormeci, sonhando com uma moça que no caminho me havia dado um pires de doce de côco.

Depois o sonho foi passando para aflito; eu era chão, chão de terra, e em cima de mim, chão, um gigante, parecido com o corneteiro do regimento, estava enroscando uma espia de navio, grossa, como um braço de homem, e fria, fria, como água de pedra.

E o gigante alava a espia, alava e ia-a enroscando, volta sobre volta, em cima de mim.

Depois eu já não era mais chão, era eu mesmo; queria agarrar o pires de cocada da moça, mas não podia, por causa do peso da espia; e do peso me veio vindo um pesadelo, que me dava a idéia de uma imensa lingüiça crua, enrolada e achatada sobre o meu rosto, sobre a garganta e o peito.

Quando o pesadelo foi me tomando por completo, quando eu ia gritar e bracejar para livrar-me da sufocação o nariz entrou em função e pôs-me alerta; e acordei-me.

O nariz acusava o cheiro acre de uma catinga, catinga de cobra, que chega a arder lá dentro, nas voltinhas do cheiramento.

Despertei, disso.

E senti o horror da minha situação. Exatamente como eu havia sonhado o gigante enrolando a espia, assim estava enroscada sobre a minha cara e pescoço e peito uma tremenda cobra; pesava como chumbo, cujo frio trespassava-me, cuja catinga me sufocava!

E dormia, muito a seu gosto, o monstro, aproveitando o calorzinho do meu corpo! Sentia-lhe a respiração curta, um nadinha assobiada; pareceu-me até - isso não garanto, mas pareceu-me - que a cobra ressonava.

Que posição, hem? Mexer-me, era acordá-la; gritar, ia assanhá-la, levantar-me, de salto, uma loucura; dar-lhe um bote à cabeça, apertá-lha pela goela mas, no escuro, se em vez do pescoço eu agarrasse-lhe o rabo?

No perigo é que se aprecia a calma dos homens.

Com mil cautelas tirei do bolso o naco de fumo, piquei-o, sovei uma palha, enrolei um grosso cigarro e comecei a pitar... a pitar... a pitar... puxando umas fumaças tão encorpadas, tão espessas, que se fosse dentro de casa fechada nublariam os aposentos! Ao cheiro ativo do forte fumo criolo a bicha moveu-se.

Deu-se com ela o que se havia dado comigo; o meu nariz despertou-me pela catinga dela; o nariz dela acordou-a pelo sarro do meu fumo. Estávamos a mano, de nariz.

A cobra acordou-se, deu uns seis ou sete espirros e foi se desenrosquilando, escapando-se furiosa, lanceando o ar, com a língua.

Eu, fuma que te fuma! E vá fumaça pelas ventas, vá fumaça!

Para encurtar o caso: nem sei para que lado ela tomou, a noite estava muito escura, o lugar muito carregado de fumaça e eu muito cansado de pitar e com frio.

Virei-me para a parede e tornei a ferrar no sono.

Segunda.

Foi poucos dias depois. Vínhamos em marcha forçada; alta madrugada o regimento fez alto. Trazíamos umas novilhas gordas, que foram logo abatidas para um rancho apressado, de churrasco.

Fazia um frio de rachar pedras.

Acendeu-se uma grande fogueira e cada um tratou de chamuscar o seu pedaço de carne.

Eu saí a procurar um espeto para o meu assadinho. A noite era muito escura, mas graças ao clarão da fogueira descobri uma pequena reboleira de mato, ali perto. Aproximei-me e quando ia cortar um galho qualquer, caiu-me ao chão a faca, abaixei-me para apanhá-la dentre as ervas, e com tal sorte, que ao lado dela encontrei um pedaço de pau tal e qual como eu queria: duma meia braça, grossinho, liso, e o que mais é, já com a ponta feita.

Por certo que seria um espeto já pronto que algum dos camaradas perdera; melhor para mim!

E ainda bati com ele no chão para limpá-lo duns capins secos, e terra que estava pegada.

Voltando, atravessei o meu churrasco no meu espeto achado, e finquei-o na beirada do fogo.

Vinha clareando o dia.

Por toda parte branqueava a geada, alta de dois dedos, geada farinhenta,. que é a mais fria de todas. Estava eu um pouco arriado, conversando, quando um cabo, baiano, que viera acender o cigarro numa brasa, gritou, olhando para o chão, admirado:

- Olha o assado com o espeto, cadete Romualdo, que vai-se embora!

Julguei que era algum gaiato que pretendia furtar-me o churrasco; mas o baiano repetiu:

- Acuda, seu cadete, que o assado vai de trote!

Corri, e que vi?

O churrasco, sim senhor, borrifado de salmoura, já chiando na gordura, que ia andando pelo chão, dava a idéia de um cágado sem pernas, mas de cabeça é cauda mui compridas!

Acudiram então outros rapazes, muitos, quase todos: e todos viram o churrasco arrastando-se, fugindo da fogueira.

Então rompeu o sol. Foi quando se pode verificar a cousa: o espeto era uma cobra!

Como estava dura, dura de frio, agüentai a todo o trabalho de atravessar o churrasco e ser cravada ao lado do fogo; depois o calor começou a assar a carne e a aquecer o espeto, isto é, a cobra, que se foi reanimando, revivendo. E logo que ela sentiu-se quentinha e de saúde, tratou de escapar.

Com o alarido e o movimento a cobra assustou-se, fez força e desfincou-se do churrasco, escondendo-se logo num buraco ali adiante.

Este caso foi muito falado naquele tempo.

Terceira cobra.

Isso deu-se depois, já no regresso do regimento, depois de entregarmos os recrutas.

Seria uma hora da tarde; tempo seco; pesado.

Vínhamos numa troteada rasgada, levantando poeira, na estrada.

Eu estava morto de sede; avistando à direita um mato, calculei que ali devia haver algum olho-d'água e pedi licença ao meu alferes para chegar até lá num galope.

Concedida; mas logo outros não se sofreram e imitaram-me e fomos, como uns sete, beber umas goladas d'água fresca.

Apeei-me eu, primeiro; e quando, já de beiço preparado para o chupão, ia debruçar-me, atirei-me pra trás, porque a meio palmo da cara vi, enroscada e furiosa, já silvando, uma cobra roxa, de umas tais que tem cerdas crespas, que nascem debaixo de cada escama da casca.

É a cobra chamada "viradeira", porque qualquer animal por ela mordido vira-se logo de papo para o ar, estrebuchando ou logo morto.

É cem vezes mais venenosa que a cascavel.

- Mata, Romualdo, senão ela vira-te!

Não esperei segundo aviso; foi só o quanto desafivelei o loro com o estribo, e fazendo deste arma, desferi uma pancada mestra sobre a cabeça da "viradeira".

Porém, ligeiríssima, a cobra ainda atirou um bote ao estribo, que era de prata, e tiniu, com o choque da dentada.

Porém matei-a.

Com a impressão do acontecimento e porque a bicha ao morrer caísse e se estorcesse n'água, todos, de nojo, perderam a sede.

Apresilhei novamente o estribo, montei e galopamos para alcançar a força, já distanciada.

Logo correu conversa sobre a cobra, aquela, e sobre outras, que não as conhecia, eu: oficiais e soldados, cada um muito honradamente esfolou a sua cobra.

Continuávamos a trotear, quando comecei a sentir o pé apertado no estribo e o cavalo meio derreado, como se trouxesse todo o peso a um lado.

Parei para examinar a esquisitice: era o estribo que ia inchando, a olhos vistos envenenado pela bruta peçonha da "viradeira", e conforme ia inchando apertava-me o pé, que já custei a retirar; e o peso da inchação ia sobrecarregando cada vez mais o cavalo.

O comandante veio ver o etribo inchado; o major veio ver: e vieram os capitães, os tenentes, os alferes, os cadetes, os sargentos, os cabos, os furriéis, os rasos.

O capitão-cirurgião ainda falou em lavar o estribo com cachaça, fumo e sal, a ver se ele vomitava, mas o regimento não podia demorar-se, e eu fui obrigado a abandonar na estrada o estribo, que já estava como um trambolho, inchado e balofo e meio azinhavrado, tirante a verde de defunto passado.

- Cadete Romualdo! Que dentada, hem?... dizia o comandante.

- Que veneno! dizia o major.

- Que cobra! diziam os capitães.

Que "viradeira"!, diziam os pica-fumo.

- Pois sim! Vão cantando, dizia eu. O que vale é que todos viram!

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