Casos do Romualdo
O dia das munhecas

Fui sempre um homem metódico, cuidadoso das minhas contas e cauteloso nos negócios em que me envolvo. Não gosto de correr à aventura e menos assentar a minha barraca sobre a areia.

No decurso das minhas viagens, ora de prazer ora de estudo, observei que o negócio das tartarugas do Amazonas era um negócio da China!

As cascas ou os cascos (não sei como convém dizer) das tartarugas, valem um dinheirão; a carne, em sopa, vale outro dinheirão, dos ovos faz-se uma espécie de manteiga, que vale um dinheirão ainda maior que os outros dois.

Resolvi, pois, fazer alguns cálculos preliminares e jogando com os algarismos - e todos sabem que os algarismos não mentem - cheguei a este resultado, satisfatório para um indivíduo modesto, como eu, Romualdo, prezo-me de ser.

Para fundar o estabelecimento adquiriria 1.000 tartarugas prontas a pôr; cada tartaruga, de cada assentada, desova 400 ovos ou sejam 400.000 para a primeira ninhada. No segundo ano, outros 400.000 ovos; no terceiro ano, as primeiras 400.000 tartarugas novas já começariam a pôr, na razão de 400 ovos cada uma, ou sejam 160.400.000 ovos para o choco do quarto ano; e assim, sucessivamente multiplicados e somados, tiradas as provas dos noves, os algarismos patenteavam que ao cabo de sete anos eu teria um viveiro de 7.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000 de tartarugas, e que daí em diante, com vigilância e economia, começaria então eu a desfrutar em manteiga de ovos, sopa e cascas (ou cascos) um regular rendimento, justa compensação do rigor do meu jogo de algarismos.

Isto assim assentado, parti para o Amazonas; fretei um pequeno navio e segui rio acima, munido de todo o necessário, inclusive muita lata de sardinha, pó de mosquito e uma grosa de garrafinhas de óleo de rícino.

Arrendei uma praia de desova e fiquei cinco meses à espera das tartarugas.

Enquanto isso, ia verificando os cálculos antigos e fazendo novos.

Um dia reuni todos os tabaréus daquela redondeza e expus-lhes o grande plano, propondo-lhes associarem-se comigo, tomando nós outras praias de 1.000 tartarugas a 400 ovos cada uma, no primeiro ano, 400.000 no segundo, etc.

Os tabaréus ficaram pasmados: de olhos parados, boca aberta apenas coçavam o queixo ou a orelha ou a nuca. Era a força dos algarismos que os achatava.

Apenas um deles, cearense, magrinho, mascador de fumo, amarelo chumbado como um bacalhau seco, apenas o cearense, puxou as barbichas do queixo, cuspinhou preto e disse, pausado:

- Eh! Eh! A conta que mencê faz, é bonita! Sim, sr. e um contão! Mas porém o jacaré não deixa ela dar esse espicho de sernambi, nhor, não!

- O jacaré?!

- Nhor sim, o jacaré! Ele come mais tartaruga do que a que nasce! Jacaré e regatão cruz! Até parecem irmãos gêmeos, de tão excomungados!

- Mas então o jacaré.

- O jacaré come tudo, patrão. Come todos os seus "garismos"; come pau, come pacu, come gente, e até o maior come o mais pequeno! "Tou" dizendo!

- Pois sim, mas o jacaré mata-se acaba-se com ele!

- Ah! mencê sabe acabar com ele, então, sim! Mas, porém, patrão. Enfim mencê é homem "estruído", há de saber.

No dia seguinte, começou a correr a voz que eu tinha jurado a matança dos jacarés do Amazonas e coincidência ou pirraça, a minha praia começou também a ficar apinhada, amontoada, estivada, forrada de jacarés, de todo o porte.

Os tabaréus comunicaram-me que as tartarugas estavam a chegar, não tardariam para a desova, e que o sinal certo era aquele, dado pelos jacarés, que se preparavam para a carniça.

E cada manhã mais jacaré aparecia; já se empilhavam uns sobre os outros; formavam pencas, cachos.

- As tartarugas já chegaram - dizia o cearense - mas não sobem por causa deles.

- Ah! sim! bradei. Pois já amanhã limpo a praia! Não vê que Romualdo erra contas por causa de jacarés! Era só o que faltava!

Ao clarear do dia, antes do sol, chamei o cearense. Cada um meteu no bolso meia vara de lingüiça frita e bolachas e pôs em bandoleiras uma cabaça d'água. Armas, apenas duas machadas, afiadas, marca XPTO.

Tomamos a montaria, uma igara grande e forte,o e vogamos até meio rio. De pé na canoa, bem em frente à nossa praia, começamos a observar para resolver como e por onde começaríamos o ataque.

Nisto, à minha direita, surgiu uma cabeça monstruosa, de jacaré velho, velhíssimo, tanto tinha os olhos enrugados. Surgiu a cabeça esgoelada e logo o corpanzil atirou-se para a embarcação; sentimos o bruto embate e imediatamente as munhecas do jacaré firmaram-se na borda da canoa, como para virá-la, de borco.

Aí, confesso, descuidei-me um pouco, não de medo, porque jacaré não me assusta, mas de pura piedade; porque vi que a fera - talvez arrependida - chorava, chorava a lágrimas grossas.

- Vai-te, bicho! bradei.

- Mencê corte! gritou o cearense. O bicho chora por falso. Corte!

Num relâmpago lembrei-me das lágrimas de crocodilo, o que sempre julguei que fosse preta, mas, não é, não: agora vi o jacaré chorar.

Travei da machadinha e paf! - fora, munheca de jacaré!

Imediatamente outro grandalhão surgiu ao lado do cearense; - paf! - bateu-lhe em cima a machada e as munhecas rolaram para o fundo da canoa.

O meu atacante foi ao fundo, o outro também.

Porém - que horror! - começou então o combate, como eu não esperava. Era jacaré sobre jacaré, uns após outros, em fila, aos três, aos pares, em grupos, todos abordando a canoa, esforçando-se por virá-la.

E nós, decididos, atentos, era só - paf! paf! - e corta que corta munheca e focinho e rabo de jacaré.

Em torno a água fervia como numa caldeira: era o bicharedo ferido, que se amontoava e revolvia furioso; nas praias outros agitavam-se, alarmados; e longe, nas barrancas, a minha gente assistia àquilo, bestificada de admiração.

E nós, tranqüilamente, era só - paf! paf! - e corta que corta munheca! A certa hora notei que tinha fome. Pudera, com aquele exercício! E já familiarizado com o inimigo, com uma mão ia decepando munhecas e com a outra tirei do bolso a lingüiça e a bolacha e fui comendo; e bebi água à minha vontade.

Mas sempre - paf! paf! - cortando munheca, porque os jacarés não diminuíram.

Com o exemplo o cearense fez como eu. Quando foi pelo meio-dia, eu já não enxergava mais o companheiro, pois que entre nós elevava-se uma pilha de munhecas, de mais de braça de altura.

Ouviamo-nos, mas não nos víamos.

Tendo almoçado fartamente, suando um pouco, sofrendo o calor e habituado à minha sesta, comecei a abrir a boca e a piscar os olhos, sonolento.

Então gritei ao cearense:

- Chega! por hoje, basta! Vamos para terra!

E para nos divertirmos e aliviar a canoa, fomos atirando munhecas cortadas para dentro das goelas dos atacantes. Pegaram a brigar uns com os outros e esqueceram-se de nós. E vá! e vá! demos-lhe um fartão. Enquanto eles se disputavam a carniça, abicamos na praia, e com lástima verifiquei que, de tanto golpe, tínhamos atorado a canoa pelo meio: dela só restava a proa, onde remava o cearense, e a popa, onde eu rabeava o leme; as machadinhas, essas estavam como meias-luas, desgastadas de tanto cortar munhecas!

Fosse pelo que fosse, já nessa noite poucos jacarés foram vistos sobre as areias da praia; no dia seguinte, menos ainda. Depois desabou uma cheia colossal do rio, inundou tudo e tudo levava na correnteza.

Tive que abandonar o meu estabelecimento, não pelos jacarés, mas por força da enchente, justamente quando devia começar a desova das tartarugas.

Ainda hoje, nas praias do Amazonas, quando estes ferozes bichos aparecem, basta que alguém - uma criança, uma mulher - basta que alguém grite: - Jacaré, olha o Romualdo! - e a fera, acobardada, envergonhada, desmoralizada pela lembrança daquela esfrega, foge, foge, a sete pés!

- Jacaré! Olha o Romualdo!

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